
“Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
[...]Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.”
O trecho faz parte do primoroso conto de Marina Colasanti intitulado “A Moça Tecelã”. O texto, extremamente dotado de sensibilidade, apresenta uma jovem que costuma tecer exaustivamente. Ela tece, tece e tece. A máquina de tecer é sua única e mais fiel companhia. Eis que certo dia a moça descobre ser detentora de um dom muito especial: seus sonhos poderiam se tornar realidade por meio dos fios de sua máquina de tecer, isto a faz construir um mundo ideal a sua volta.
Ela tinha tudo. Porém, ao sentir-se dominada por uma desamparada solidão, resolve criar um marido, utilizando-se dos fios mais fortes, belos e nobres. Surgem muitos planos e sonhos. Ela idealiza uma vida perfeita ao lado do companheiro desenhado conforme seus ideais.
O homem, no entanto, ao perceber a habilidade da moça, cresceu em ambição, mal que o levou a trancafiá-la e exigir coisas absurdas. O tão desejado amor não mais existia. Tornou-se pesadelo.
Perspicaz, a moça decide desfazer-se de toda a riqueza inútil e do próprio companheiro que outrora criara por meio de seus fios. Ela destece tudo e reencontra a felicidade, escondida no canto dos pássaros durante a manhã, no balançar das árvores e em toda a simplicidade que a envolvia, mas que havia sido esquecida mediante a riqueza e a maldade do opressor.
O conto nos leva a refletir sobre questões tangíveis à condição humana. Muitas vezes construímos imagens ideais do mundo que nos cerca. Mas o que não percebemos é que aquilo que seria “ideal” nem sempre é o “certo”. Na qualidade de seres pensantes, temos o magnífico dom de tecer nosso próprio mundo. O tecemos a nossa maneira. Prescindimos, no entanto, do real valor significativo das pequenas coisas; esquecemos da simplicidade que gratuitamente embeleza cada instante.
A busca pelo sucesso nos leva a, incondicionalmente, buscar a perfeição. Ao exigirmos muito de nós mesmos passamos a ignorar o mundo que nos cerca. É válido reservar alguns instantes para destecer um mundo idealizado e passar a confrontar a realidade tal como ela é. Deixar, ao menos um pouco, de viver utopicamente pode ser válido e é um bom passo para a busca da tão almeja felicidade, aspirada por todo ser humano. Somos tecelões de nossa própria história. Saibamos selecionar fios nobres e consistentes. A escolha é nossa...