domingo, 9 de novembro de 2008

Heróis que matam

Dia 23 de abril de 1975. Os relógios já marcam altas horas da madrugada. Três jovens de classe média passeiam pelas ruas da grande São Paulo em um fusca azul. Os policiais militares suspeitam dos jovens e passam a persegui-los incessantemente. O motorista, o menor Francisco Noronha, temendo pelos policiais, acelera o máximo que pode. Entre bruscas freadas e curvas perigosas, perde a direção e colide com um poste.

 

Os policiais militares das rondas Ostensivas Tobias de Aguiar número 66, abordam os três jovens com tiros à queima-roupa. Aniquilam um por um sem motivo pré-estabelecido. Detectam se estão realmente mortos e os levam ao hospital alegando se tratarem de criminosos. Alteram o local do crime, dificultando o trabalho da perícia. Diversos casos com as mesmas características aconteceram a partir de então.

 

Esse fato despertou o instinto detetivesco do jornalista Caco Barcellos que passa a investigar todos os casos de extermínio de supostos criminosos pela PM. A árdua e invejável pesquisa de 22 anos resultou em uma obra detalhista, requintada e perturbadora. “Rota 66- A História da Polícia que Mata” (Editora Record, 2003, 350 páginas), equipara-se a famosos best-sellers de ficção. Os detalhes do sadismo dos “defensores da lei” estancam no leitor uma confluência de sentimentos como angústia, nojo, apreensão, ódio e ansiedade. Difícil crer que se trata de uma realidade brasileira.

 

O episódio dos três jovens do fusca azul obteve repercussão na época porque foi contrário às práticas comuns de extermínio tradicionais: a maioria dos assassinados eram pessoas pertencentes a camadas sociais desprivilegiadas, moradores da periferia de São Paulo, negros e menores de idade.

 

O autor é capaz de traçar em sua narrativa, aspectos físicos e psicológicos das personagens exterminadas e dos policias opressores, a ponto de causar a impressão de que são criações dele. Isso é resultado de arriscadas entrevistas com familiares das vítimas e intenso aprofundamento analítico em documentos esquecidos da polícia militar. Com o livro, Caco Barcellos procura solucionar os casos de injustiça, opressão e abuso de poder por parte daqueles que, teoricamente, deveriam honrar a justiça.

 

 

Passados alguns anos desde a elaboração da obra de Caco Barcellos, a mascarada impunidade prevalece. No dia 28 de junho de 2008 o policial militar Marcos Parreira do Carmo baleou o estudante Daniel Duque, 18 anos, na saída de uma boate do Rio de Janeiro. O resultado do julgamento não poderia ser diferente. Em uma atitude descaradamente corporativista, o júri garantiu inocência ao PM. Resultados como esses são relatados de forma contestadora na descrição dos inquéritos que julgavam as operações das Rondas Ostensivas.

 

“Rota 66” possui peculiaridades que o assemelha ao grandioso e famigerado clássico de Truman Capote, “A Sangue Frio”. Descrições minuciosas, riquezas de detalhes e narrativa cativante são elementos comuns a ambos. O trabalho de Barcellos revela a excelência da função social desempenhada pelo jornalismo. Serve como fonte de inspiração para qualquer profissional que almeja aperfeiçoar-se e para quem simpatiza com eletrizantes histórias de ação.   

Nenhum comentário: