domingo, 28 de fevereiro de 2010

Casas que Emburrecem

No dia 7 de fevereiro, véspera de meu aniversário de 21 anos, recebi uma homenagem muito especial! A equipe de amigos do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) resolveu fazer um ofício divido para comemorar quatro momentos muito especiais: meu aniversário; aniversário de Fernando Escodeiro; Doutorado de Áurea Esteves e a formatura de Hugo Tizura. Ao final do emocionante momento celebrativo, resolveram nos presentear de uma forma bem peculiar: com poesia!

Nossa amiga Fernanada Guilabel recitou lindamente a crônica "Casas que emburrecem", do mestre Rubem Alves. Muita gente não conseguiu conter as lágrimas, inclusive eu! Nada melhor do que ser presenteado com poesia!!!

Compartilho com vocês o texto de Rubem Alves!



"O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!"

Quem disse foi o Riobaldo, com o que concordo e também digo amém. Pois eu estava rastreando uns camundongos burros criados pelo prof. Tsien e umas teorias do prof. Reuben Feuerstein (pronuncia-se fóier-stáin) no meio de uma mataria de idéias quando topei com um menino de sandálias havaianas na porta do aeroporto de Guarapuava que fez minha rastreação parar. O que ele me pedia era mais importante, pedia que eu lhe comprasse um salgadinho para ajudar. Parei, comprei, comi, perdi o rumo, deixei de rastrear os camundongos do prof. Tsien e as teorias do prof. Feuerstein, entrei por uma "digressão", meu pensamento excursionou ao sabor das minhas emoções - mas agora estou de volta, o faro de cão rastreador afinado de novo.

Pois o prof. Tsien, da Universidade de Princeton, se deu ao trabalho de criar camundongos mais burros que os domésticos. Se você se espanta com o fato de um cientista gastar tempo e dinheiro para produzir camundongos burros, desejo chamar a sua atenção para o fato de que a burrice é muito útil, do ponto de vista político e social. Aldous Huxley afirma que a estabilidade social do "Admirável Mundo Novo" se devia aos mecanismos psico-pedagógicos cujo objetivo era emburrecer as pessoas. A educação se presta aos mais variados fins. Pessoas inteligentes, que vivem pensando e tendo idéias diferentes, são perigosas. Ao contrário, a ordem político-social é melhor servida por pessoas que pensam sempre os mesmos pensamentos, isso é, pessoas emburrecidas. Porque ser burro é precisamente isso, pensar os mesmos pensamentos - ainda que sejam pensamentos grandiosos. Prova disso são as sociedades das abelhas e das formigas, notáveis por sua estabilidade e capacidade de sobrevivência.

Os camundongos burros do prof. Tsien, confrontados com situações problemáticas, eram sempre derrotados pelos camundongos domésticos. Mas o objetivo da pesquisa era inteligente. O prof. Tsien queria testar uma teoria: a de que, se os camundongos burros fossem colocados em situações interessantes, estimulantes, desafiadoras, a sua inteligência inferior construiria mecanismos que os tornariam inteligentes. Em outras palavras: limitações genéticas da inteligência podem ser compensadas pelos desafios do meio ambiente. Assim, ele colocou os camundongos burros em gaiolas que mais se pareciam com parques de diversão, dezenas de coisas a serem feitas, dezenas de situações a serem exploradas, dezenas de objetos curiosos. Como mesmo os burros têm curiosidade e gostam de fuçar, os camundongos começaram a agir. Depois de um certo período de tempo, colocados em situações idênticas juntamente com os camundongos domésticos, os camundongos burros tinham deixado de ser burros. Não ficavam de recuperação.

Não conheço a obra do prof. Feuerstein. Suas teorias sobre a inteligência me foram contadas. Fiquei fascinado. Desejo que ele esteja certo. Pois o que ele pensa está de acordo com as conclusões de laboratório do prof. Tsien. Feuerstein tem interesse especial em pessoas que, por fatores genéticos (síndrome de Down, por exemplo) ou ambientais (ambientes pobres econômica e culturalmente) tiveram suas inteligências prejudicadas. Diante de testes o seu desempenho é inferior ao de crianças "normais". Sua hipótese, testada e confirmada, é que, se tais pessoas forem colocadas em ambientes interessantes, desafiadores e variados, a sua inteligência inferior sofrerá uma transformação para melhor. A inteligência se alimenta de desafios. Diante de desafios ela cresce e floresce. Sem desafios ela murcha e encolhe. As inteligências privilegiadas podem também ficar emburrecidas pela falta de excitação e desafios.

Isso me fez dar um pulo dos camundongos do prof. Tsien, as teorias do prof. Feuerstein, para as casas onde moramos. Nossas casas são um dos muitos ambientes em que vivemos. Cada ambiente é um estímulo para a inteligência. (É difícil ser inteligente num elevador. No elevador só há uma coisa a se fazer: apertar um botão...) . E pensei que há casas que emburrecem e há casas onde a inteligência pode florescer.

Não adianta ser planejada por arquiteto, rica, decorada por profissionais, cheia de objetos de arte. Não sei se decoração é arte que se aprende em escola. Se a decoração se aprende em escola, pergunto se existe, no currículo, uma matéria com o título: "Decoração de emburrecer - decoração para provocar a inteligência"... Essa pergunta não é ociosa. Casas que emburrecem tornam as pessoas chatas. Criam o tédio. Imagino que muitos conflitos conjugais e separações se devem ao fato de que a casa, finamente decorada, emburrece os moradores. Lá os objetos não podem ser tocados. Tudo tem de estar em ordem, um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar. Orgulho da dona de casa, casa em ordem perfeita.

Acho que foi Jaspers que disse que ele não precisava viajar porque todas as coisas dignas de serem conhecidas estavam na sua casa. Jaspers viajava sem sair de casa. Mas há casas que são um tédio: lugar para dormir, tomar banho, comer, ver televisão. Se é isso que é a casa, então, depois de dormir, tomar banho, comer e ver televisão não há mais o que fazer na casa, e o remédio é sair de gaiola tão chata e ir para outros lugares onde coisas interessantes podem ser encontradas. Sugiro aos psicopedagogos que, ao lidarem com uma criança supostamente burrinha, investiguem a casa em que ela vive. O quarto mais fascinante do sobradão colonial do meu avô era o quarto do mistério, de entrada proibida, onde eram guardadas, numa desordem total, quinquilharias e inutilidades acumuladas durante um século. Ali a imaginação da gente corria solta. Já a sala de visitas, linda e decorada, era uma chatura. A criançada nunca ficava lá. Na sala de visitas a única coisa que me fascinava eram os vidros coloridos importados, lisos, através do qual a luz do sol se filtrava.

Na minha experiência, a inteligência começa nas mãos. As crianças não se satisfazem com o ver: elas querem pegar, virar, manipular, desmontar, montar. Um amante se satisfaria com o ato de ver o corpo da amada? Por que, então, a inteligência iria se satisfazer com o ato de ver as coisas? A função dos olhos é mostrar, para as mãos, o caminho das coisas a serem mexidas. Acho que uma casa deve estar cheia de objetos para serem mexidos. A casa, ela mesma, é para ser mexida. Razão por que eu prefiro as casas velhas. Tenho um amigo que comprou um lindo apartamento, novinho, e morre de tédio. Porque não há, no seu apartamento, nada para ser consertado. Eu sinto uma discreta felicidade quando alguma coisa quebra ou enguiça. Porque, então, eu posso brincar...

Os livros precisam estar ao alcance das mãos. Em todo lugar. Na sala, no banheiro, na cozinha, no quarto. Muito útil é uma pequena estante na frente da privada, com livros de leitura rápida. Livros de arte, por exemplo! É preciso que as crianças e jovens aprendam que livros são mundos pelos quais se fazem excursões deliciosas. Claro! Para isso é preciso que haja guias! Cuidado com os brinquedos: brinquedo é um objeto que desafia a nossa habilidade com as mãos ou com as idéias. Esses brinquedos de só apertar um botão para uma coisa acontecer são objetos emburrecedores - aperta um botão a boneca canta, aperta outro botão a boneca faz xixi, aperta um botão o carro corre. Não fazem pensar. No momento em que a menina resolver fazer uma cirurgia na boneca para ver como a mágica acontece - nesse momento ela está ficando inteligente. Quebra-cabeças: objetos maravilhosos que desenvolvem uma enorme variedade de funções lógicas e estéticas ao mesmo tempo. Armar quebra-cabeças à noite: uma excelente forma de terapia familiar e pedagogia: o pai ensinando ao filho os truques. Ferramentas: com elas as crianças desenvolvem habilidades manuais, aprendem física e experimentam o prazer de consertar ou fazer coisas. A quantidade de conhecimento de física mecânica que existe numa caixa de ferramentas é incalculável. A cozinha aberta a todos. A cozinha é um maravilhoso laboratório de química. Cozinhar educa a sensibilidade.

Você nunca havia pensado nisso, a relação entre a sua casa e a inteligência, a sua inteligência e a inteligência dos seus filhos. Sua casa pode ser emburrecedora. Ou pode ser um espaço fascinante onde os camundongos do prof. Tsien repentinamente ficam inteligentes...

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